Em momentos de emergência colectiva, o bom senso, a racionalidade e o sentido prático devem imperar. A histeria, que se traduz, por exemplo, na aquisição de bens não essenciais à sobrevivência, e, por outro lado, fingir a normalidade, mantendo a orquestra a tocar enquanto o navio afunda, serão contraproducentes, porque ambas são respostas desadequadas perante uma crise. Porque iludem a realidade e não priorizam o que é mais importante ou urgente, mesmo que se compreenda que são uma forma de as pessoas terem a sensação de reganharem o controlo, mesmo que fictício, numa situação que ultrapassa o nosso controlo.
Na actual emergência nacional e mundial, que virou tudo do avesso e coloca tanta gente na luta pela Vida, pelo Emprego e pela Sobrevivência Económica, haverá alunos e famílias com dificuldades para fazerem as suas REFEIÇÕES, já neste primeiro período de confinamento social.
Sem olvidar ou secundarizar tal emergência sanitária e social — antes da aula, está o valor da Vida —, os professores estão, paralelamente, a fazer tudo o que está ao seu alcance para manter a ligação da escola aos alunos e contribuir, nesta fase de isolamento social, para que mantenham uma parte da sua rotina através de actividades escolares. É de louvar este trabalho.
Contudo, uma coisa é manter essa ligação da escola aos alunos, através de actividades como o trabalho de casa, outra coisa é continuar o processo de ensino-aprendizagem (formação) como se nada tivesse mudado, isto é, passarmos, num ápice, do sistema de ensino presencial para um sistema de ensino à distância, sem olhar a condições e circunstâncias. Iludindo a realidade e sobrecarregando, duplamente, as famílias, sobretudo aquelas que, neste momento, não têm os recursos nem a disponibilidade de acompanhar os seus filhos no ensino à distância.
Além do mais, os alunos que, na presença e sob orientação e ordens do professor, já não realizavam as tarefas de aprendizagem na sala de aula, não cumprindo um dever basilar, estarão predispostos a realizar as tarefas remotamente? Este problema de autonomia, disciplina pessoal e educação da vontade agudiza-se caso o aluno esteja entregue a si próprio.
Pelo que os professores têm percebido da experiência de envio das tarefas escolares aos alunos, sobretudo via e-mail, depois do fecho das escolas, há alunos sem computador, com material informático obsoleto, sem internet, alguns não têm um endereço electrónico ou, se o têm, não têm por hábito utilizá-lo. Em casas com vários filhos, não há, normalmente, um computador para cada um. E o computador pode até estar a ser utilizado pelos pais em regime de teletrabalho. Temos de ter em conta o contexto sócio-económico das famílias e a grave crise sanitária que vivemos. Poderão, neste momento, os nossos governos ter capacidade para disponibilizar material tecnológico e ligação à Internet aos alunos que os não têm? Será, agora, essa a prioridade?
Por tudo isto, o voluntarismo dos professores não é uma panaceia.
Bem como o ensino à distância não pode potenciar contextos e circunstâncias de DESIGUALDADE e DISCRIMINAÇÃO no acesso dos alunos à aprendizagem e ao conhecimento. Seria uma regressão civilizacional e democrática.
Se o reitor da Universidade da Madeira referiu que, naquele nível de ensino, não conseguia passar de um dia para o outro de ensino presencial para ensino à distância, então ao nível do
ensino básico mais difícil será, pelo nível etário dos alunos, pela diferença da sua autonomia e dos meios tecnológicos que eles e as escolas possuem. No caso dos professores com um grande número de turmas, conseguirão dar resposta remotamente a tão elevado número de alunos? O ensino está todo orientado para o ensino de massas presencial: ensinar muitos de uma só vez, para rentabilizar recursos. Tem também essa enorme vantagem da presença humana do professor.
Os professores, aqueles que têm em casa recursos tecnológicos, estão, solidariamente, nesta fase de emergência, a disponibilizar esses recursos pessoais ao serviço pedagógico, para manter a referida ligação com os alunos. Contudo, há professores que não têm o material informático ou ligação à Internet como se, optimisticamente, se presume ou imagina. No meu caso, tenho ligação à Internet, mas móvel e de baixo custo, com tráfego e velocidade limitados. Meios dimensionados para uso pessoal, não para o regime de teletrabalho.
Sem esquecer, todavia, que o trabalhador em regime de teletrabalho tem «direito a que o empregador forneça os instrumentos de trabalho e tecnologias da informação e comunicação necessários e que assegure a respectiva instalação e manutenção e o pagamento das inerentes despesas (por exemplo, electricidade e telecomunicações)», como alertou a maior central sindical do país. Mesmo numa crise, não é um vale tudo. O trabalhador tem ainda «direito à sua privacidade e à da sua família, bem como aos tempos de descanso e de repouso», isto é, não pode estar em trabalho todo o tempo, a qualquer hora do dia ou da noite — quando o funcionário não está “debaixo de olho” para justificar o ordenado, há quem o imagine estendido no sofá: segundo tal mentalidade, teletrabalho não é trabalho.
Façamos, pois, o que estiver ao nosso alcance perante os desafios colocados. Com bom senso e massa crítica, porque ter sentido crítico não é ter má vontade nem ser anti-patriótico. Pelo contrário, é querer que as coisas funcionem, de facto; sem desperdício de energia, de tempo, de recursos, nem de atropelos de direitos de alunos e professores; sem esquecer, nem tão pouco secundarizar, a assistência social que muitos alunos e famílias já precisam neste momento.
Aguentem-se por aí, seguros e fortes. E atentos.
*O texto não segue o Acordo Ortográfico de 1990