Não vês como aqueles que agora reivindicam apoios do Estado, eram os que, antes, defendiam que ele não deveria intervir na economia
Finalmente, Jesus levantou a cabeça, olhou cada um dos acusadores, olhos nos olhos, e disse:
– Aquele de vós que nunca foi incoerente atire a primeira pedra.
Novamente se entreolharam, atónitos e incrédulos. O silêncio percorreu-lhes as veias e anichou-se nos seus cérebros, desconstruindolhes todas as certezas, que, ainda há pouco, pareciam inabaláveis. Despidos de certezas, cabisbaixaram. Foi um minuto de esvaziamento existencial, mas, pelas suas mentes, passaram-se décadas de vida.
Incapazes de aguentar o vazio, foram-se afastando, um a um, como se fossem transeuntes ocasionais que se depararam com um incidente
terminado.
Jesus, abandonando o jogo de cabala no seu telemóvel, aproximou-se daquela professora acusada de ser incoerente porque, tendo sido sempre uma grande defensora da vacinação, se recusou a apanhar a 8.ª dose da vacina contra a Covid-19, e disse-lhe:
Professora, ninguém te condenou? Também eu não te condeno, tanto mais que há limites para tudo, até para a coerência. Acompanha-me e fala-me de ti.
Maria, era esse o seu nome, resumiu os últimos anos de trabalho difícil nas escolas; das aulas à distância devido aos períodos, cada vez mais frequentes, de isolamento profilático dos alunos; da multiplicação das reuniões virtuais a invadirem a sua vida pessoal e familiar; da burocracia fluida a infiltrar-se em todos os espaços de liberdade da vida escolar; da corrida inglória atrás de uma aposentação que corre em sentido inverso aos anos que vai completando como professora; da multiplicação das microturmas dentro da turma, fator impercetível, a partir do exterior, da sobrecarga de trabalho dos professores. Enfim, é a completude, nada a podendo superar. Não era uma questão de incoerência, mas, pelo contrário de busca da perfeição. Por isso, acreditou que, com a 7.ª dose, a Ciência tinha atingido o seu auge. Infelizmente, enganara-se e temia, agora, que algo estivesse para além da sua capacidade de compreensão.
Jesus parou, olhou-a como quem a compreende profundamente, e disse-lhe, docemente:
– Maria, lembras-te do meu discurso na montanha?
– Sim, Senhor, como poderia esquecer a sabedoria subtil das Bem-Aventuranças?
Esse mesmo, o das Bem-Aventuranças divinas, aquelas que há muito foram suplantadas pelas bem-aventuranças dos senhores do mundo, de que faz parte a incoerência com que governam. Não vês as borgas de Boris Johnson? Ouviste Costa ou Rio falar de educação no debate que tiveram a semana passada, apesar de dizerem que é fundamental para o país? Já viste tanto dinheiro investido em alguma doença, como nesta? A incoerência domina o mundo, Maria, porque cada um age em função dos seus interesses momentâneos e não do bem comum. Não vês como aqueles que agora reivindicam apoios do Estado, eram os que, antes, defendiam que ele não deveria intervir na economia, mas deixá-la funcionar segundo as leis da iniciativa privada?
Vai, Maria, sê tão tolerante contigo como és com os outros.