Na edição do Expresso de 4.6.2016, Henrique Monteiro, não sei se na veste de jornalista, comentador, jurista-constitucionalista ou outra, vem interpretar, de forma que me parece quase «autêntica», o art. 75.º da CRP.
Comecemos pelo art. 75.º, 1: «O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população». Julgo que Henrique Monteiro sustenta que onde se lê «estabelecimentos públicos» se pretende fazer referência ao «uso de todos (qualidade do que é público)». Teria sido bom que Henrique Monteiro dissesse que dicionário utilizou e que outros significados ali surgiam. No que consultei (Houaiss, Temas e debates, 2005, p. 6671), vejo que «público» também pode ser o que é pertencente «a um povo, a uma comunidade»…
Na minha opinião, Henrique Monteiro parece esquecer muitas coisas. Parece esquecer, antes de mais, a própria epígrafe do art. 75.º: «Ensino público, particular e cooperativo». O Ensino Público é contraposto ao ensino particular e ao ensino cooperativo. Por outras palavras: o Ensino Público não é contraposto ao ensino de uso particular e ao ensino de uso cooperativo.
Além disso, o art. 75.º, 1, impõe ao Estado o dever de «criar» estabelecimentos públicos de ensino. Se está em causa a criação de estabelecimentos públicos pelo Estado, é evidente que não se trata de estabelecimentos criados por particulares ou por cooperativas! Ainda que estes sejam para uso… público.
Mas Henrique Monteiro parece esquecer ainda outra coisa: um estabelecimento de ensino é um meio de produção. De produção de serviços, desde logo. Ora, quanto aos meios de produção o que diz o art. 82.º da CRP é que há três sectores de produção: o sector público, o sector privado e o sector cooperativo e social. E agora pasme-se: ao contrário do que parece achar Henrique Monteiro, o sector público não é o mesmo que sector de «uso de todos»! Leia-se o art. 82.º, 2, da CRP: «O sector público é constituído pelos meios de produção cujas propriedade e gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas».
Como no art. 75.º, 1, da CRP está em causa um meio de produção, a referência à natureza pública desse estabelecimento tem que ser lida à luz do art. 82.º da mesma Lei. Estabelecimento público é o que integra o sector público dos meios de produção: por outras palavras, estabelecimento público é o estabelecimento cuja propriedade e gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas.
Achar que a lei se refere, de um lado, a um «estabelecimento público» com o sentido de estabelecimento de uso de todos, quando o sector público é constituído pelos meios de produção de propriedade e gestão do Estado ou outras entidades públicas, é forçar a nota. Os Senhores Deputados que votaram a favor das alterações ao art. 75.º podem ter querido muita coisa. Mas o que quiseram não se sobrepõe aos dados que uma interpretação objetivo-atualista revela.
Se Henrique Monteiro consultar o que escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira sobre o art. 75.º da Constituição da República Portuguesa (CRP anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra 2007, p. 903), pode aí encontrar escrito que o ensino público abrange «as escolas públicas, ou seja, as pertencentes a qualquer entidade pública (Estado, regiões autónomas, autarquias locais)».
Henrique Monteiro dá também muito valor ao facto de, em versão anterior do art. 75.º, 2, a Lei Fundamental dispor que o Estado fiscalizava «o ensino particular supletivo do ensino público». Para Henrique Monteiro, ao cair a referência a «supletivo», estava-se a querer significar que o ensino privado e cooperativo «não é para suprir as falhas da rede oficial». Mais uma vez, a Lei Fundamental é mais sábia do que qualquer Senhor Deputado, jornalista ou comentador. Veja-se bem: se o referido art. 75.º, 2, estabelecia que o Estado fiscalizava o ensino particular supletivo do ensino público, isto poderia dar a entender que o restante ensino particular (o não supletivo) não teria que ser fiscalizado… Agora, não é assim. Na atual redação do art. 75.º, 2, vemos que «O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei». Está muito bem. O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo tanto no caso de este ser supletivo, como no caso de não o ser. Reconhecimento e fiscalização que terão lugar, obviamente, nos termos da lei. Esta, por sua vez, deverá ter em consideração as várias realidades possíveis.
Lembre-se, também a propósito do art. 75.º, 2, o que escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (p. 906): «O preceito parece abranger todo o ensino particular e cooperativo (e essa conclusão é reforçada pelo facto de a 1.ª Revisão Constitucional, de 1982, ter suprimido uma referência restritiva ao ensino “supletivo do ensino público”)».
Certamente a pesquisa das declarações dos Senhores Deputados indicará que muitos pensavam coisas diferentes. Mas a chamada interpretação subjetivista histórica não tem em conta que a lei é mais sábia do que o legislador.
Henrique Monteiro tem razão numa coisa: está em causa uma certa conceção do Estado e «daquilo» (ou do) que é público. Está em causa saber se o Estado só serve para colocar dinheiro sem ter os lucros: nas escolas privadas ou nos Bancos. Mas está também em causa a ideia de Estado Republicano. Está em causa, como mais uma vez dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, a «missão constitucional do ensino público (vocação universal, não confessionalidade, pluralismo interno, etc.)» (p. 909).
Não tenho a pretensão de fazer Henrique Monteiro mudar de ideias. Até porque parece-me que já as tem feitas.
Alexandre Soveral Martins
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra